04 maio, 2009

Ainda o poema


Ainda o poema
Rogel Samuel

Devido ao interesse e pedido de uma leitora e amiga volto ao poema-enigma de Márcia Sanchez Luz, pois muito mais haveria que descobrir no seu mistério, e estas minhas crônicas diárias são por natureza muito curtas e eu sou um crítico de muito pouco alcance. Pois: o que significa que a ferida que nasce não seja no sujeito, mas na lua escondida, na fria e escondida lua negra e invisível? Na lua delirante rebenta uma ferida escondida, cuja dor a lua desintegra e pacifica e a transforma naquela belíssima “chuva de gaivotas”. Nesta primeira estrofe a dor é objetiva, apesar de dizer “amo demais”, é objetivada, toma existência no objeto lua fora do sujeito, mas se concebe no seu interior, portanto se faz quase épico do que lírico, é emoção objetivada. E é por isso que se sente logo de saída uma atmosfera camoniana. A segunda estrofe não, faz ver o sujeito que sofre. Sofre com a flor que viu nascer – do amor -, mas sofrer aqui com o sentido de admitir, permitir, tolerar, consentir, experimentar, não apenas padecer. Mesmo que “grota” significa depressão sombria e úmida, o sujeito nela não se esconde, mas se abre e não combate, não se fecha ao que atrai, ama e gera descompasso. Lua negra é lua uterina que, fecundada, explode numa chuva de gaivotas.

Amo demais que até ferida brota
na cálida, escondida lua negra
dos meus delírios (dor que desintegra
calma desnuda em chuva de gaivota).

Os olhos choram mares, geram grotas,
fabricam densa nuvem que se integra
ao corpo equivocado pela entrega
sofrida num adeus desfeito em gotas.

Amo demais, eu sei, mas o que faço
se de outro jeito não conheço o amor?
A minha sina é nunca combater

o que me atrai e gera descompasso.
Se por um lado existe o dissabor,
tenho da vida a flor que vi nascer.





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Gosto demais da poesia em forma de soneto. Difícil de se fazer, tem regras rígidas que prendem o fazer poético em versos contados e métrica impecável. Não permite um deslize. E nisso a Márcia é perfeita! E se na 'forma' do soneto ela é craque, no conteúdo deste ela foi brilhante.

Roger teceu em dois posts comentários concernentes, precisos.
Eu acrescentaria, na singeleza desta imagem:(dor que desintegracalma desnuda em chuva de gaivota)a dubiedade da 'calma desnuda' em colisão com a 'chuva de gaivotas'. O paradoxo e a ambivalência do poeta está explodindo de fertilidade num contraponto da calma com o céu se desmanchando em chuva, não uma qualquer, mas sim de gaivota.
É um soneto para se pensar no escuro da dor, enquanto a poetisa chora seu mar. Água do céu, água dos olhos... Lindo e forte.
Parabéns ao Roger pela leitura 'comentarizada', e parabéns a Marcia pela beleza de soneto.

Elza Fraga




Só mesmo a Márcia, poeta de verdade, a quem admiro de longa data, para propiciar uma análise do Samuel de encher os olhos! Parabéns ao Samuel pelo debruçar-se sobre a Lua Negra e dar o merecido destaque a você Márcia a quem acompanho com sofreguidão e afeto imensurável.

Airo Zamoner



Parabéns ao leitor que comenta e à poetisa que merece ser comentada! De leituras se faz uma obra, no leitor, nos leitores. Este poema tem parte confessional na personagem que em si confecciona: «amo demais»… e a si se consola escrevendo «tenho da vida a flor que vi nascer». O que acontece, o que aconteceu? Disso se tece e tecem todas as leituras, parabéns a quem leu e a quem escreveu. Abraços.

Francisco Coimbra



Amiga, criar uma flor lunar já é raríssimo; ter, além disso, um comentário do grande escritor Rogel Samuel sobre ela é o máximo do desabrochar e da plenitude. Parabéns. Mil beijos, Leila



Bom dia, querida poeta. Um prazer compartilhar com você de vários espaços e ainda ter o privilégio de receber os seus convites.


É sempre um prazer e um grande satisfação para o poeta ter um poema (e/ou seu corpo poético) avaliado por alguém tanto competente para tal. É um reconhecimento justo do seu valor.
Espero que tudo isto sirva ainda mais para inspirar grandes poemas.
A profundidade da poesia é qualquer coisa de apaixonante. Um vôo d'alma.
Não digo parabéns, digo obrigado por existir!
Um grande abraço e obrigado por nos oferecer suas obras.

Hideraldo Montenegro


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